Stella



Stella 
(Mariana Machado)







Estava realmente frio para uma tarde de verão. Era inicio das férias. Nossa casa já estava repleta de familiares. Naquele momento uma fina chuva caia e começava a banhar nosso quintal. Ícaro, desesperado, arrastou-me para dentro da casa, com medo que a chuva e o vento me presenteassem com alguma gripe ou resfriado.
Era obvio que sua preocupação era exagerada, algo que eu sentiria falta muitos anos depois.
A casa, repleta de crianças, estava abarrotada. Não havia muito que se fazer com aquele tempo. Mas como sempre, independente de chuva ou sol, ele não saiu do meu lado por um só segundo.
Eu deveria ter oito anos nessa época e ele não mais do que treze. Éramos jovens e dispostos.
Ele era o mais velho de todos. Como eu, era filho único. Todos os outros primos tinham ao menos mais três irmãos.

Não sei se pela falta de um companheiro, pelos dois lado, nos sempre nos demos muito bem. Ele sempre cuidou de mim e me protegeu. Até mesmo quando ele já estava velho demais para conviver com minhas brincadeiras ainda infantis.
Talvez não fosse a falta de companhia, mas sim o amor. Talvez, já naquela época ele existisse. Bem diferente do amor que existe entre dois irmãos.
Em grandes famílias, geralmente existe aquela aproximação geral. Todos sabem tudo e tudo é muito próximo de todos. Fato. Mas sempre existe o mais próximo de um. Ele era o meu mais próximo. Como seu pai era do meu, e sua mãe da minha. Por isso sempre estávamos juntos, mesmo quando não eram férias.

Naquele dia chuvoso de verão eu fiquei admirando-o. Ele estava tão lindo. A chuva havia molhado levemente seus lindos cachos castanhos. Sua pele, um pouco mais clara que a minha, estava coberta de minúsculas gotículas de chuva.
Sua blusa continha alguns minúsculos círculos, causados por minha permanência na chuva.
Ele já era alto. Era mais alto que tio Jaime, seu pai e estava batendo no queixo de papai, que tinha quase dois metros.
Seu rosto já tinha traços mais vis. Seu queixo levemente redondo, abrindo-se em uma pequena cova deixava-o com um ar juvenil. Mas seu nariz meticulosamente simétrico com o resto do rosto e seus olhos verdes-esmeraldas, protegidos por longas sobrancelhas acastanhadas, davam-lhe um toque adulto. Naquela época, começaram a surgir os primeiros indícios de que sua barba não tardaria a aparecer e realmente não tardou.
Tinha ombros largos, normais para o porte que lhe pertencia. Tinha os braços e as pernas longas e uma cor mais clara que branco translúcido, que lhe adornava o corpo já escultural. Seus músculos já duros e desenvolvidos, tais como de um homem, davam-lhe aquele ar serio, que com o tempo seu jeito adquirira.


Tio Jaime sempre fora um homem responsável. Irmão de meu pai e um homem tão batalhador ou mais do que ele, sempre fez de tudo para que o filho e a mulher tivessem tudo do bom e do melhor.
Mas tia Carmem era o inverso do meu tio. Lembro-me uma vez, de estarmos no sitio de meus avos paternos. Havia um grande jardim, rodeado de varias espécimes de flores e altas e velhas arvores. Ícaro estava sentado perto de alguns girassóis e eu estava deitada no chão, com a cabeça em seu colo. Ele carinhosamente fazia cafuné em mim.
Eu já deveria ter uns doze anos, pois se me lembro bem, ele tinha acabado de completar dezessete.
Enquanto me acariciava, eu brincava distraidamente com os girassóis e às vezes ficava absorta com a ligação que essa flor tinha com a localização do sol. Era tudo muito mágico para mim.
Uma hora, Ícaro deslizara sua mão para meu pescoço e clavícula e ficou fazendo carinhosos movimentos com os dedos por lá.
Começou a contar-me que sua mãe, tia Carmem havia aprontado mais uma de suas. Não que ela fosse irresponsável, porem era de certa forma tão energética quanto nós.
Depois de contar toda a historia, fiquei paralisada e como sempre ele não resistiu.

- Diga algo, Tella, você sabe muito bem que odeio não saber o que você esta conjeturando.
- Eu somente fico imaginando como o casamento de seus pais pode dar tão certo...
- O que você quer dizer com isso? – perguntou-me ele enquanto me encarava perplexo. Sua mão estava parada em minha nuca e a temperatura de sua mão fazia com que eu me sentisse bem.
- Tio Jaime e tia Carmem são tão diferentes! Não sei bem como dão certo!
- Acho que o pré-requisito é esse! Olhe pra nos dois... Bom, eu sempre sou tão responsável e exageradamente preocupado e você totalmente solta, sem se importar muito com as coisas.
-Sim, talvez você esteja certo. Afinal, não há ninguém no mundo que me faça sentir tão bem quanto você, ou tão segura.
- É bom saber que se sente assim, meu bem! Não sabia que desempenhava tamanhos sentimentos em você.
- É bom que saiba, afinal já estou tão acostumada com tudo que há em você, que acho que não reagiria bem se por um acaso, de uma hora para a outra não tivesse mais.
- E por que você me diz isso?
- Por que você já esta quase com dezoito anos e logo estará na idade de casar-se. Não que eu esteja pedindo que não o faça, mas que não se esqueça de sua querida prima depois de fazê-lo.
- Você é tão tola, Stella. Acha mesmo que eu me esqueceria ou a largaria, só por que me casei? Ou pior, acha mesmo que vou me casar, só por que acham que devo?! Conheces-me muito bem para saber que eu só o faria por amor.
- Sim, eu sei. Desculpe-me se o ofendi. – disse sentando e estendendo a mão para afagar-lhe o rosto.
Ele agarrou-me pela cintura e puxou-me para mais perto dele. E então repousou sua cabeça sobre a minha.
Queria tanto admirar seus olhos verdes, pelo qual eu era apaixonada,que me desfiz rapidamente daquela posição, um pouco bruta demais para uma menina.
- O que foi? – perguntou-me ele.
- Gosto de admirar seu rosto. Gosto também de percorrê-lo.
- Então por que diabos esta demorando tanto para fazê-lo?
Levemente passei a ponta dos dedos por sua testa. Ela estava levemente gelada. Alisei seu nariz rapidamente, chegando em suas maças do rosto, o que lhe provocava cócegas. Descia rapidamente para suas bochechas, onde encontrava pequenos talhos de barba por fazer. E quando chegava em seus lábios, minhas mãos tremiam e se demoravam demais por lá.
Seus lábios eram cheios, como o de tia Carmem e de um vermelho bem mais intenso do que o normal, o que entrava em contraste com sua pele pálida.
Finalmente chegava em seu queixo e o contornava inteiramente, parando em sua covinha e empoleirava-me para beijar suas duas órbitas oculares, que ficavam fechadas, logo que minha mão chegava em seu queixo.
Todo aquele ritual já era normal há algum tempo.
Naquele dia, mesmo eu sendo muito nova para aquilo, a decisão foi tomada.
Quando voltava para meu lugar, depois de beijar seus dois olhos, ele me pegou desprevenida.
Enquanto meu rosto atravessava o espaço que existia entre nós, ele segurou-o com as duas mãos e levemente encostou seus lábios nos meus e beijou-me com delicadeza. Certamente eu já era apaixonada por ele. Aquilo tudo que veio depois disso, já era de se esperar por todos. Nada poderia mudar aquilo, nem mesmo eu, se quisesse.

Era engraçado como ele me protegia e como sempre esteve perceptível de como eu era fascinada por ele.
Eu sempre o idolatrara. Sempre o amara. E sempre havia sido recíproco.
Minha avó sempre brincava, que nós dois parecíamos girassóis e sol. Se ele se movimentasse um só centímetro, eu me movimentaria também, um centímetro só. Era como se ele fosse o Sol e eu a flor. Era como se eu me adaptasse a direção que ele escolhe-se.
Naquela época parecia algo bonito, romântico. Mal sabia eu que era algo realmente literal.







Lembro-me de como se fosse hoje. Era uma amigável reunião familiar. Já estávamos namorando há alguns anos. Nossos pais se deliciavam com o caminho que nossa relação estava seguindo.
Eu já era uma moça, devia estar com dezesseis anos, pois me recordo de já ter iniciado a conversa sobre os deveres da mulher com minha mãe.
Foi numa noite agradável. Temperatura normal. Um vento frio soprava, como sempre. E também como de habitual, estávamos juntos.
Debruçados em uma janela. Ele enlaçava-me na cintura e seu corpo, sempre tão quente, fazia com que a temperatura ficasse perfeita.
O céu estava mais escuro do que de costume e também havia estrelas demais. Ficamos algum tempo observando aquela dádiva dos deuses então do nada ele puxou-me para a sala.
Todos estavam reunidos naquele aposento. O radio tocava baixo alguma balada melancólica e todos repousavam com uma taça de bebida na mão. Alguns também fumavam e soltavam longas baforadas de fumaça.
Ícaro carregou-me até o centro da sala e pediu que a atenção de todos fosse por um instante nossa.

- Espero que esse dia se torne mais importante depois desse meu pronunciamento – disse ele com os olhos brilhando. – hoje mesmo estando comemorando não temos nada em especial para comemora além do fato de estarmos todos juntos. Então imaginei que se desse isso a vocês, nossa noite ficaria mais agradável. Ainda mais a sua Tella. – Ele me fitava e a excitação era evidente.
A sala era um murmurinho só. Nossos familiares já imaginavam o que era e esperavam ávidos seu pronunciamento.
- Há alguns dias eu me encontrei com Tio Andrei e Tia Márcia e fiz-lhes a determinada proposta: Pedi a mão de Stella em casamento. Como meus tios aceitaram de bom grado e logo depois deles, minha amada também o fez, posso contar-lhes hoje, que eu e Tella estamos oficialmente noivos. – disse ele, enquanto o êxtase tomava conta de sua voz. Ele inclinou-se um pouco e pousou de leve seus lábios nos meus.
A felicidade era evidente e tomava conta do ambiente. Um de meus tios, imediatamente trocou a música e aumentou o volume. Agora uma musica alegre e dançante ecoava na sala.
- Temos que brindar essa noticia! – bradava meu pai. – Esse é um momento muito especial para todos nós!
- Traga um pouco de vinho, mamãe. – disse tio Jaime.
Não demorou muito e nossa avó apareceu com uma de suas melhores garrafas de vinho, para brindar nosso noivado.

Depois daquela festa as mulheres de nossa família, reuniram-se em torno de mim. Nossos pais queriam que o casamento acontecesse logo e os preparativos deviam ser cuidados por nós.
Não foi um dos meus momentos favoritos. Por mais que fosse algo lindo e que toda mulher gostasse, eu me distanciei um pouco dele. Os homens não deveriam se meter nos preparativos do casamento.
Meu casamento ocorreu três meses depois daquela simples reunião familiar.
Foi em uma igreja no centro da cidade. A mesma igreja em que meus pais se casaram. Era uma igreja simples. Não tinham muitos ornamentos, somente alguns arcanjos e querubins de bronze que decoravam a igreja desde a porta, até o altar. E lá, no altar havia uma enorme cruz de madeira maciça que lá estava desde a criação da mesma.

Eu estava extasiada. Meu pai me guiava pela igreja. Pelo caminho eu focalizava os anjos cor bronze, para não chorar e borrar minha pintura.
Ele estava me esperando no altar. Em contraste com todos os outros homens naquela igreja, ele estava genuíno. Ícaro tinha quase dois metros de altura. Seu cabelo estava de forma despenteada, o que fazia as mechas loiras se destacarem. Estava impecável e muito belo como sempre.
Meu vestido combinava com a cor de sua pele.
Quando chegamos ao pé do altar, Ícaro levantou a mão e meu pai colocou minha mão por cima da dele.
A cerimônia foi rápida e nossos votos foram simples, porém sinceros.
A festa foi algo muito simples, contrariando a vontade de Ícaro, que queria algo grandioso.
Dancei com todos os homens de minha família e me delicie nos braços de meu marido. O mais gracioso dançarino da festa.
Eu tinha que admitir que fora o dia mais feliz da minha vida.


Quem escolheu o local da nossa lua-de-mel foi ele. Ele escondeu de mim nosso trajeto ate chegarmos lá.
Ficamos duas semanas em Paris. A cidade do amor e da paixão. E foi nessa cidade que irradiava amor que eu tornei-me mulher, nos braços inexperientes de meu marido.
Ícaro assim como eu, ainda era virgem. Ele havia prometido que só se deitaria com aquela que ele realmente amasse e naquela primeira noite, ele cumpriu sua jura.







Depois de trinta anos de casamento você se acostuma. Com as coisas boas e as ruins. Você começa a olhar com mais ternura até aquilo que você não suportava.
Mas com quantos anos de casamento você vai se acostumar a ser agredida diariamente? A ser espancada? Quantos anos de casamento seriam necessários para isso? Eu só esperava que não faltasse muito.
Eu nunca soube o que aconteceu com meu marido. Tudo parecia tão perfeito. E por um tempo foi.
Nosso casamento era calmo. Ele era um marido amoroso: flores, presentes, jantares, viagens nos finais de semana. Carinhoso, gentil e compreensivo.
Eu era uma esposa impecável: só tinha olhos para ele; fazia todo o serviço domestico sem reclamar, mesmo ele querendo me ajudar, contratando uma empregada; fazia social para seus amigos. Nunca negava nada a ele. E o amava mais que tudo.
Mas depois de três anos de casamento. Depois de três anos de um paraíso, tudo se modificou.
Eu não sei o que aconteceu e vou ter que me contentar com isso. Nunca saberei. Talvez ele tenha se amargurado demais. Talvez eu não tenha alcançado suas expectativas. Talvez tenha sido o fato dele ser estéril. Eu realmente não sei. A única coisa que sei é que independente de qual foi a  causa, ela foi destruindo aos poucos todo o imenso amor que ele sentia por mim, até não sobrar mais nada.
E por mais difícil que isso tenha sido, indiretamente, o que consumiu o amor dele, também consumiu o meu....

Confesso que guardei na minha memória algumas das datas mais importantes que tive com ele. E mesmo hoje, já estando velha demais para ter todas as recordações junto de mim, aquelas que guardei dele, estão todas aqui.
Mesmo já estando tanto tempo com meu segundo marido, eu não pude nunca tirar a imagem do meu primeiro amor. Do meu primo, me esperando sobre alguns querubins. E depois disso todas as imagens foram apagadas. Mas é essa imagem que dois segundos antes de morrer irá passar por trás de minhas pálpebras. E quando for meu ultimo segundo verei Paulo, meu segundo, mas eterno amor.








Tudo tem um fim. E Ícaro e eu tivemos o nosso. É sempre assim, tudo sempre começa e tudo também sempre termina. Isso é inevitável, irremediável e inexplicável.

O Assassinato não fora muito brutal. Na realidade, poderia se passar por uma morte natural. Depois de todos aqueles anos vivendo com ele, eu já havia imaginado, ao menos algumas vezes, certas formas dolorosas de torturas para vingar-me.
Certamente do jeito que aconteceu foi o melhor. Algo tão instantâneo e indolor que seria impossível acreditar. Para os dois lados.
A campainha não demorou muito a tocar e alguém inconsciente de todos os meus anos de sofrimento estava ali para vingar sua morte. Para descobrir o que havia acontecido com ele.
Eu não deixaria a minha chance escapar. Coloquei aquela máscara no rosto, aquela mesma máscara que usava todos os dias, quando ele chegava em casa e jorrava palavrões.
Pelo menos aquilo me servira para alguma coisa. Tranquei meus sentimentos e avancei pelo corredor escuro. Não deixaria que um policial estragasse tudo. Descobrisse meu crime e me separasse do homem que eu amava e que me merecia. Nenhum homem nunca mais me machucaria. Paulo nunca permitiria isso. Muito menos eu.