terça-feira, 5 de junho de 2012

A nossa estrela vai cair - Mariana Machado




Estava tarde, uma tarde que já durava quase trinta anos. Maria conhecia Rui há tanto tempo que já nem sabia mais quanto. E como o havia amado. O amou quando o viu pela primeira vez e persistiu amando-o até a última vez que o viu. Mas isso nem sequer passava em sua cabeça agora. Nunca pensara que a vida havia lhe reservado tantas coisas, de formas tão coesas.  Na verdade, a vida fora cruel com ela: deu-lhe o amor de sua vida, mas não deixou que eles ficassem juntos.
Por motivos sádicos do destino, ela casara com outro homem, tivera seus filhos, ficara viúva, tudo num período muito curto de tempo. E Rui seguiu sua vida, tal como ela.

Até que um dia, por uma ironia, se reencontraram. E como uma explosão, aquele amor tão antigo, tão grande, que estava tão adormecido, se tornou vívido, se tornou forte novamente.
Mas já havia se passado tanto tempo: A vida tinha acontecido, tanta água já tinha rolado, Maria tinha seus filhos, Rui ainda casado, tendo sua família, tendo uma imagem construída a manter, que seria tão trágico destruir, até mesmo se fosse para dar vazão a um amor tão forte.

Tentaram se afastar novamente, com toda a força que havia em seus corações. Mas haviam esperado tanto tempo por um raio de felicidade real em suas vidas que essa tentativa não durou muito, não durou nada.
No primeiro reencontro, marcaram em um café em Ipanema e conversaram tanto: Maria contou como foi difícil ter de deixá-lo, como seu marido fora um homem bom, mas ainda assim não tão bom ao ponto de fazê-la esquecer dele. De como ter ficado viúva a fez pensar ainda mais no antigo amor. Imaginar se ele ainda pensava nela. O homem, contou – com orgulho – dos filhos e seus feitos. De como sentia falta da cumplicidade da antiga amada, que sua mulher – afinal, quando os dois se conheceram ele já era casado há alguns anos – como sempre nunca lhe dera nenhum suporte ou carinho. Que pensara em Maria em todos esses anos, reservando a ela o seu amor mais puro, o seu carinho mais forte, os seus sonhos mais intensos.
Ela já com quase cinquenta, ele entrando na casa dos setenta. E isso nada mudava. Sentiam tudo tão forte quanto quando tudo começou, há tantos anos atrás.

No segundo encontro, marcaram num antigo cinema da zona sul, e quando as luzes se apagaram, Rui pôs sua mão por cima da de Maria. E quando as luzes se ascenderam, no final do filme, o flagrante de um beijo apaixonado entre os dois amantes.

Daí em diante eles se encontravam todos os dias, em um antigo hotel, no centro da cidade, onde décadas atrás já haviam se encontrado tantas vezes.
Três horas da tarde, em ponto, no quarto vinte e cinco do hotel Linda do Rosário. E assim se foi um ano de encontros diários, de promessas apaixonadas, de declarações românticas, de beijos e caricias que tinham como propósito recuperar tantos anos perdidos, pôr todo aquele amor em dia.
Nem imaginavam aquele dia fatídico. Nem imaginavam que conseguiriam pôr seu amor definitivamente em dia, sem pausas, sem quem os atrapalhasse, sem quem os interrompesse.
Foi na tarde do dia vinte e cinco de setembro de dois mil e dois. A tarde já estava quente, e Maria e Rui acabaram chegando um pouco mais tarde do que de costume ao Linda do Rosário. Pegaram o quarto de sempre e se despiram, deitaram de frente um para o outro, cada um com a palma da mão sutilmente colocada por cima do rosto do outro. Declararam-se, como tantas outras vezes, com um fervor ainda maior. Estavam felizes por estarem juntos.
Foi então quando o quarto tremeu de leve e um pedaço da parede se soltou e caiu no chão. Os dois continuaram calmos, não se levantaram da cama, apenas deram as mãos, ainda em transe no próprio amor.
Alguns minutos depois o quarto tremeu ainda mais forte, e nesse momento Rui já sabia o que os esperava. Não tardou muito para que o interfone do quarto tocasse, todos os funcionários sabiam que eles estavam ali, como todos os outros dias. Mas continuaram deitados, um olhando para o outro, em silêncio. Um rapaz foi até o quarto e bateu, gritou, chamou pelos dois, alertando da tragédia que seguiria: o Hotel ia desabar. A rachadura na fachada, as vigas já bambas, eram eminentes.

Rui então chegou mais perto da mulher e perguntou se ela queria se levantar e ir embora.  A mulher, com um sorriso nos lábios, respondeu que não, que de tanto se esconder para poderem se amar, Deus havia lhes dado à oportunidade de finalmente encontrarem o seu lugar, juntos.
O funcionário do hotel voltou a bater na porta, chamando os dois. Rui fez menção de se levantar e falar com ele, mas Maria pediu para que ficasse deitado ao seu lado e deixasse o rapaz, afinal já não aguentava mais fugir.
O homem então a abraçou bem forte e sussurrou em seu ouvido que esse era somente “o começo do fim de suas vidas”.
Maria o beijou uma ultima vez, e o apertando ainda mais, disse ao amado que havia chegado a hora de o amor dos dois finalmente ser mostrado, ser tornar conhecido, real, aceito. Os dois se juntaram tão forte naquele abraço que se tornaram um só, e nem a implosão do prédio conseguiu separá-los.

A avenida foi interditada por medo de maiores desabamentos. Os bombeiros chegaram e o funcionário alertou do velho casal que preferira continuar no recinto. Levaram sete dias para que o corpo dos dois fosse encontrado, nus, mortos, abraçados no resto do que era a cama em que o amor dos dois se fez valer. Sete dias para seus corpos, ainda quentes pelo abraço amoroso, passasse pela avenida.
E da tragédia, uma estrela se fez ver, e eles estavam enfim juntos no céu. 



Um comentário:

  1. Gostei de sua adaptação da história. É engraçado como ficamos imaginando o que aconteceu e ao mesmo momento nos colocando no lugar deles. Fui com minha noiva em Inhotim e ficamos cantando baixinho Conversas de botas batidas em frente à instalação "Linda do Rosário", de Adriana Varejão. Eu acho que não precisamos ir até Verona atrás de um cenário que represente uma história de amor. Basta ir em Inhotim.

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