Estava tarde, uma tarde que já durava quase trinta anos. Maria
conhecia Rui há tanto tempo que já nem sabia mais quanto. E como o havia amado.
O amou quando o viu pela primeira vez e persistiu amando-o até a última vez que
o viu. Mas isso nem sequer passava em sua cabeça agora. Nunca pensara que a
vida havia lhe reservado tantas coisas, de formas tão coesas. Na verdade, a vida fora cruel com ela: deu-lhe
o amor de sua vida, mas não deixou que eles ficassem juntos.
Por motivos sádicos do destino, ela casara com outro homem,
tivera seus filhos, ficara viúva, tudo num período muito curto de tempo. E Rui
seguiu sua vida, tal como ela.
Até que um dia, por uma ironia, se reencontraram. E como uma
explosão, aquele amor tão antigo, tão grande, que estava tão adormecido, se
tornou vívido, se tornou forte novamente.
Mas já havia se passado tanto tempo: A vida tinha
acontecido, tanta água já tinha rolado, Maria tinha seus filhos, Rui ainda
casado, tendo sua família, tendo uma imagem construída a manter, que seria tão
trágico destruir, até mesmo se fosse para dar vazão a um amor tão forte.
Tentaram se afastar novamente, com toda a força que havia em
seus corações. Mas haviam esperado tanto tempo por um raio de felicidade real
em suas vidas que essa tentativa não durou muito, não durou nada.
No primeiro reencontro, marcaram em um café em Ipanema e conversaram
tanto: Maria contou como foi difícil ter de deixá-lo, como seu marido fora um
homem bom, mas ainda assim não tão bom ao ponto de fazê-la esquecer dele. De
como ter ficado viúva a fez pensar ainda mais no antigo amor. Imaginar se ele
ainda pensava nela. O homem, contou – com orgulho – dos filhos e seus feitos. De
como sentia falta da cumplicidade da antiga amada, que sua mulher – afinal,
quando os dois se conheceram ele já era casado há alguns anos – como sempre
nunca lhe dera nenhum suporte ou carinho. Que pensara em Maria em todos esses
anos, reservando a ela o seu amor mais puro, o seu carinho mais forte, os seus
sonhos mais intensos.
Ela já com quase cinquenta, ele entrando na casa dos
setenta. E isso nada mudava. Sentiam tudo tão forte quanto quando tudo começou,
há tantos anos atrás.
No segundo encontro, marcaram num antigo cinema da zona sul,
e quando as luzes se apagaram, Rui pôs sua mão por cima da de Maria. E quando
as luzes se ascenderam, no final do filme, o flagrante de um beijo apaixonado
entre os dois amantes.
Daí em diante eles se encontravam todos os dias, em um antigo
hotel, no centro da cidade, onde décadas
atrás já haviam se encontrado tantas vezes.
Três horas da tarde,
em ponto, no quarto vinte e cinco do
hotel Linda do Rosário. E assim se foi um ano de encontros diários, de
promessas apaixonadas, de declarações românticas, de beijos e caricias que
tinham como propósito recuperar tantos anos perdidos, pôr todo aquele amor em
dia.
Nem imaginavam aquele dia fatídico. Nem imaginavam que conseguiriam
pôr seu amor definitivamente em dia, sem pausas, sem quem os atrapalhasse, sem
quem os interrompesse.
Foi na tarde do dia vinte
e cinco de setembro de dois mil e dois. A tarde já estava quente, e Maria e
Rui acabaram chegando um pouco mais tarde do que de costume ao Linda do Rosário. Pegaram o quarto de
sempre e se despiram, deitaram de frente um para o outro, cada um com a palma
da mão sutilmente colocada por cima do rosto do outro. Declararam-se, como
tantas outras vezes, com um fervor ainda maior. Estavam felizes por estarem
juntos.
Foi então quando o quarto tremeu de leve e um pedaço da
parede se soltou e caiu no chão. Os dois continuaram calmos, não se levantaram da
cama, apenas deram as mãos, ainda em transe no próprio amor.
Alguns minutos depois o quarto tremeu ainda mais forte, e
nesse momento Rui já sabia o que os esperava. Não tardou muito para que o
interfone do quarto tocasse, todos os funcionários sabiam que eles estavam ali,
como todos os outros dias. Mas continuaram deitados, um olhando para o outro, em
silêncio. Um rapaz foi até o quarto e bateu, gritou, chamou pelos dois,
alertando da tragédia que seguiria: o Hotel ia desabar. A rachadura na fachada,
as vigas já bambas, eram eminentes.
Rui então chegou mais perto da mulher e perguntou se ela
queria se levantar e ir embora. A mulher,
com um sorriso nos lábios, respondeu que não, que de tanto se esconder para poderem
se amar, Deus havia lhes dado à oportunidade de finalmente encontrarem o seu
lugar, juntos.
O funcionário do hotel voltou a bater na porta, chamando os
dois. Rui fez menção de se levantar e falar com ele, mas Maria pediu para que ficasse
deitado ao seu lado e deixasse o rapaz, afinal já não aguentava mais fugir.
O homem então a abraçou bem forte e sussurrou em seu ouvido
que esse era somente “o começo do fim de suas vidas”.
Maria o beijou uma ultima vez, e o apertando ainda mais,
disse ao amado que havia chegado a hora de o amor dos dois finalmente ser
mostrado, ser tornar conhecido, real, aceito. Os dois se juntaram tão forte naquele
abraço que se tornaram um só, e nem a implosão do prédio conseguiu separá-los.
A avenida foi interditada por medo de maiores desabamentos. Os
bombeiros chegaram e o funcionário alertou do velho casal que preferira
continuar no recinto. Levaram sete dias para que o corpo dos dois fosse encontrado, nus, mortos, abraçados no resto do que era a cama em que o amor dos
dois se fez valer. Sete dias para seus corpos, ainda quentes pelo abraço
amoroso, passasse pela avenida.
E da tragédia, uma estrela se fez ver, e eles estavam enfim
juntos no céu.
Gostei de sua adaptação da história. É engraçado como ficamos imaginando o que aconteceu e ao mesmo momento nos colocando no lugar deles. Fui com minha noiva em Inhotim e ficamos cantando baixinho Conversas de botas batidas em frente à instalação "Linda do Rosário", de Adriana Varejão. Eu acho que não precisamos ir até Verona atrás de um cenário que represente uma história de amor. Basta ir em Inhotim.
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